Todo o quarto
era uma grande bagunça. Tudo havia sido revirado inúmeras vezes e até agora não
encontrara. A esperança que ainda restava era de que tivessem caído por trás
das gavetas do guarda-roupa. Sentada no chão, deu um tranco mais forte e
removeu a parte do móvel. Haviam miudezas de toda espécie, mas as sapatilhas
não estavam lá. Ainda passou a mão automaticamente, embora racionalmente
soubesse que nada encontraria naquele lugar. E agora? Isso não pode estar acontecendo, não pode.
Quase como um
zumbi se levantou vagarosamente, sem dar muita atenção para os objetos
espalhados pelo quarto. Caminhou até a cama sobre a qual o vestido repousava
solitário. Enquanto uma lágrima finalmente saltava e escorria preguiçosamente
pelas maçãs do rosto, sentou-se. Por que
fazem isso comigo? Qual a razão de tamanha raiva? Ela sabia. Era tudo mais
uma brincadeira de suas irmãs. Sempre fora assim. A maior diversão delas era
vê-la em desespero. Não diria que dessa vez tinham passado dos limites, pois há
muito seu sofrimento não podia ser justificado por qualquer tipo de satisfação
que alguém poderia sentir.
Ali ficou por alguns
momentos. Os longos dedos finos tocaram o tecido do vestido, de um tom abóbora
tão claro que era quase rosa. Sentiu as delicadas pedras de vidro, que pareciam
pequenos cristais. Nunca mais terei outra
chance depois de hoje. Tanto esforço para chegar até aqui. Tudo para nada. A
respiração, que antes era sem ritmo, agora definitivamente começava a lhe
faltar, devido aos soluços e ao choro. Ao lado da cama estavam as credenciais e
o programa da apresentação daquela noite. Olhou o celular. Não tenho mais tempo, menos de meia hora e não há como chegar lá. Sem
certeza alguma, apanhou tudo e colocou na mochila surrada. Cuidadosamente,
ajeitou o vestido e os adereços que usaria. Vestiu uma camisa xadrez sobre a
camiseta preta com o símbolo de uma banda de rock e deixou o quarto. Sabia que
quando todos voltassem mais tarde ela seria duramente repreendida. Que a
colocassem para fora de casa, se fosse o caso. No auge de seus treze anos
talvez fosse um bom momento para pôr um basta a tudo aquilo.
Bateu a porta da
casa com força. O subúrbio estava calmo, como sempre. Onde ir era tão incerto
quanto o que fazer. Devia ter ligado para alguma outra colega e pedido um par
de sapatilhas emprestado, mas agora era tarde. Talvez pudesse ter ido logo ao
teatro e contado tudo à professora, mas a imagem dela a repreendendo surgia em
sua mente. Assim como as irmãs rindo de sua desgraça. Apertou forte o colar que
tinha com a foto da mãe. Se você ainda
estivesse aqui, nada disso estaria acontecendo. Nada disso nem nada do que
tenho passado. A única certeza era de que não podia ficar ali parada,
esperando.
As pernas se
moveram por conta própria. Apertava o vestido contra si enquanto se perdia em pensamentos.
Tocou o portão recém pintado e notou que o celular tocava. Apanhou-o da bolsa,
mas não teve coragem de atender. O que
vou dizer? Não posso decepcioná-lo. Não há o que fazer. Mais uma vez
naquele dia, não atendeu a ligação. Não se conteve e veio aos prantos, deixando
os joelhos suportarem o peso do corpo. Socou o chão com força e, com a cabeça
erguida, permaneceu alguns instantes olhando as estrelas e a lua alta no céu. Fechou
os olhos e deixou que as lágrimas secassem, mesmo que novas insistissem em
surgir.
— O que acontece, criança? O que pode
afligir de maneira assim cruel uma criatura ainda tão jovem para conhecer o que
é um verdadeiro sofrimento? — uma voz a trouxe de volta.
— Hoje era o meu grande dia — disse se
levantando e apertando o vestido contra si. A senhora que morava na casa ao
lado lhe dava arrepios, como sempre. Era uma senhora bem vestida, sempre muito
bem cuidada, não dispensando uma pesada camada de maquiagem, mas ela sempre
tivera muito medo daquela mulher. Mesmo assim, a garota parou em frente a ela.
Além do mais, estava decidida a tomar as rédeas de sua vida e talvez começar
superando estes medos fosse um bom começo.
— A grande noite? E o que poderia haver
nesta tão comum noite para desta especial forma ser chamada?
— Isto — disse, retirando o programa do
espetáculo — hoje eu finalmente iria me apresentar no teatro principal. E ainda
como protagonista.
— Bailarina, criança? Desde minha mais
tenra idade, toda dança me fascina, mas nada é tão sublime como o ballet. Nada.
Mas, creio ter ouvido a palavra “iria”. Por que razão não irá mais?
— Não sei o que aconteceu com minhas
sapatilhas. Na verdade eu sei exatamente o que aconteceu, mas não consegui
encontrá-las.
— E acaso isto é o mesmo que o final dos
tempos? — disse a senhora se aproximando e tocando o vestido com as mãos
enrugadas.
A garota puxou-o
contra si sem muito disfarçar. Um asco tomou conta dela. A mulher percebeu e
com um sorriso de escárnio tocou novamente o tecido, ainda olhando fixamente a
menina.
— Mas que belo vestido é este que tem em
suas mãos e que lástima seria perder a apresentação de hoje. Uma falta
imperdoável destas levará teu nome à desgraça em todas as companhias de dança
da cidade e teu futuro se esvairá como as lágrimas que agora secam em teu belo
rosto — terminou passando os dedos sob os olhos da garota, que deu um passo
para trás.
Com o cenho
fechado, virou-se para seguir, ainda sem rumo. A senhora repousou a mão direita
no braço da garota e puxou-a de volta. Embora fosse muito velha as mãos eram inesperadamente
firmes.
— Por que tanta pressa? Se não há o que
ser feito, talvez juntas possamos encontrar uma solução, o que me diz, doce
criança a desabrochar?
Era a primeira
vez que trocava mais que um “bom dia” com aquela senhora, mas a forma como ela falava
lhe parecia estranha. Desde o início notou que ela falava de uma maneira um
pouco mecânica. Era como se tivesse que se adaptar ao vocabulário que usava. Pensou
que poderia ser uma estrangeira, mas não havia sotaque, era a forma como falava
que causava incômodo.
— E como a senhora poderia me ajudar?
Por acaso tem um par de sapatilhas para me emprestar?
— Ora, além de bailarina ainda é alguma
espécie de adivinha? Outrora fui uma das maiores bailarinas que esta cidade já
viu, criança. Ainda guardo os apetrechos que usei naquela época. Venha comigo e
talvez encontremos algo que lhe caiba.
— Mesmo assim, faltam apenas 15 minutos
para a meia noite, quando começa minha apresentação. Como eu poderia chegar lá
e me aprontar a tempo? Não há o que ser feito.
— Incredulidade. Eis o maior defeito
humano — a velha disse, tocando o ombro da garota. Ela nem chegou a piscar os olhos
e o sol ainda começava a se pôr no horizonte. Alguns raios ainda conseguiam se
esgueirar por entre as casas, atingindo-as nos rostos.
— Mas, como? O que você fez?
— Apenas te dei um pouco mais de tempo.
Venha comigo!
A antiga casa
causava uma sensação estranha. Embora fosse ricamente decorada, era como se
estivesse entrando em uma espécie de jaula. Opostas à porta, imensas estantes
abarrotadas de livros subiam até quase encontrar o teto. Atrás de si, junto à
porta, o alto das paredes era repleto de cabeças de animais empalhados. Sobre
vários móveis pequenos animais inteiros, quase sempre alguma ave, repousavam
com olhar perdido. Correu os olhos sem parar em nenhum, até que à sua direita,
em uma pequena mesa de madeira, um coelho lhe chamou a atenção. Não havia sido
preparado em sua posição natural, como os outros, mas quem o montou fez questão
de passar a impressão de que o animal fora acuado. O artista com certeza teve
trabalho, mas o resultado era hipnotizante. Os dentes estavam arreganhados na
direção de quem o olhasse e os olhos de vidro pareciam estranhamente reais,
pois era possível notar o terror do animal. O provável momento da execução
manteve-se incrivelmente fiel, bem como a expressão feroz, frente à morte
inevitável.
Os pés da garota
tocaram a borda do tapete que cobria quase toda a ampla sala. Parou e olhou a
imagem. As cores eram muito vivas e vibrantes. Chamas se alastravam por uma
floresta no final do outono, enquanto animais tentavam fugir. As chamas
vermelhas se misturavam às folhas alaranjadas das árvores. Haviam árvores já
sem folhas que ardiam como um braseiro. Em meio ao fogo era possível notar
algumas criaturas que já haviam encontrado seu fim e algumas que pareciam ainda
lutar por suas vidas, em vão. Algumas eram claramente animais, mas outras
estavam tão retorcidas que era quase impossível dizer do que se tratava. A
fumaça subia escura em direção ao céu azulado do final da tarde. Era como se
dançasse alegre pela destruição que era causada embaixo. Em alguns pontos
parecia formar imagens de rostos sorridentes. Mais que sorrisos, era uma
expressão de êxtase. Uma das figuras parecia olhar diretamente para quem a
observava. Um olhar penetrante e estranhamente atraente. Era como se quase
pudesse ouvir uma voz lhe chamando. Apenas um sussurro, que ia ficando mais
compreensível a cada instante, enquanto o rosto também se tornava mais real.
Parecia que a cada vida que era tomada pelas chamas, aquele rosto adquiria mais
energia. Quase podia ouvir as chamas estalando e os urros de dor das criaturas
na floresta. O cheiro de madeira queimada era forte. A figura assustadora
continuava a lhe olhar fixamente. Era como se não houvesse mais nada em volta,
apenas a fumaça espessa e escura. Um cheiro de carne e pelos queimados inundava
o lugar. Os urros ficavam mais altos, enquanto a fumaça tomava conta de tudo,
girando e girando, cada vez mais rápido. O rosto na sua frente era cada vez
mais nítido. Os sons foram dando lugar a ao sussurro daquela face que se comunicava
sem mover os lábios. Cada vez era mais nítido. Já era quase compreensível.
— E não é que encontrei algo perfeito! —
a voz da senhora a fez voltar à realidade. Ela estava parada bem no centro do
tapete, embora não se lembrasse de ter andado até ali. Não havia face alguma
formada da fumaça. Uma ilusão de ótica,
lembrou-se de que algumas pinturas, quando vistas de pontos diferentes, formam
imagens. Com certeza era o mesmo que acontecia com aquele tapete.
Virou-se para a
senhora atrás de si. Sobre o velho piano repousava um par de sapatilhas abóbora,
com pequenas pedras que pareciam cristais. Caminhou até lá e as tomou em suas
mãos. Era possível perceber que eram muito antigas, mas estavam incrivelmente
bem conservadas, como se só tivessem sido tiradas da caixa naquele instante.
— É como se tivessem sido criadas para serem
usadas por ti nesta noite — disse a velha, tirando-as de suas mãos com um sorriso
estranho no canto dos lábios — vamos ver se lhe servem. Acredito que eu tivesse
a mesma idade de ti quando elas foram feitas, mas nunca tive a oportunidade de
usá-las.
Entraram na sala
ao lado. O aposento era cercado de quadros imensos. Da família da velha
senhora, com certeza, a julgar pela forma como se pareciam com ela. Mas,
estranhamente, não havia sequer um quadro de uma figura masculina. Era como um
museu, de onde se podia observar a passagem dos séculos através das roupas e
penteados daquelas mulheres. Sentada em uma poltrona, a menina estendeu o pé
direito para que a senhora lhe colocasse uma das sapatilhas. Parecia que era a
sua própria ali, de tão perfeita.
— Eu sabia — falou a senhora com as mãos
cruzadas em concha sob seu ventre — nesta idade os pés das garotas não variam
muito de tamanho. Apenas os seus corações se diferenciam, bem como seus sonhos.
— Ficou mesmo muito boa. Não sei como
posso lhe agradecer por isto. Agora vou poder dançar e ele não vai me achar uma
idiota desorganizada.
— Ele? Creio que não é de teu professor
que fala — interrompeu a senhora, abaixando-se e tirando a sapatilha do pé da
garota — quem seria este “ele” tão especial? Alguém da companhia? Ou alguém que
irá lhe assistir esta noite?
— É o filho do prefeito. Ele irá dançar
comigo hoje e não quero desapontá-lo, porque somos muito amigos — foi o que
saiu de repente, enquanto suas bochechas coravam.
— Sim, claro, um amigo demasiado especial
que você não quer desapontar. É realmente muito bonito quando estas...amizades
desabrocham nesta idade. Mal me recordo como foi comigo, mas sempre vejo o
mesmo sentimento nos corações das garotas ao longo dos tempos.
— Bem, preciso ir agora, porque ainda vou
pegar o metrô para chegar lá na hora. Muito obrigada.
— A minha intenção foi de lhe ajudar,
criança. Mas não disse que lhe entregaria as sapatilhas assim, sem que faça por
merecê-las — a velha as manteve afastadas da menina — preciso de uma prova. Mas
prova alguma seria demais perante a beleza do amor. Ou da amizade, como queira.
— Tudo bem, é justo — respondeu a garota
automaticamente — poderá me pedir o que quiser quando eu voltar, irei te ajudar
com muito prazer — completou com um sorriso desajeitado.
— Criança, acho que não fui muito clara.
Deve fazer por merecer tal presente e isto significa que o que fará deve ser
feito antes de ter o presente consigo. Não se preocupe com as horas. Creio que
já tenha notado que isto não será problema algum. Teu tempo será mais que
suficiente.
— O que devo fazer então?
— Entenda, para conseguir algo que seja
importante, é preciso se desfazer de algo tão importante quanto. Não podes
pagar por nada com um valor abaixo do que vale. E se não pagar antes de
usufruir da graça, não lhe dará o devido valor. Já não é mais uma menina, pois floresceu
para o amor. Então, é chegada a hora de provar que as amarras da infância se
foram completamente. Quero este colar que traz consigo. O que tem a foto de tua
mãe.
— Meu colar? Mas é muito importante para
mim. É a única lembrança que guardo dela, além de que não terá nenhuma
serventia para a senhora. Não me obrigue a fazer isto.
— Não lhe obrigarei a nada, minha cara.
Apenas lhe digo qual o preço para que tenha posse destas sapatilhas, se acaso
elas lhe forem importantes.
A garota apertou
o colar em suas mãos. Olhou para as sapatilhas e se perdeu em pensamentos. Esta noite é muito especial. Finalmente vou
dançar com ele. É minha grande chance de impressioná-lo. Mais que isso, é minha
chance de mostrar que sou especial. Poderei provar isto a todos aqueles que têm
me maltratado. Se não for nesta noite, quando será?
— Exato, esta é tua grande noite,
criança. E tenho certeza que tua luz resplandecerá no espetáculo e tua vida
será outra daqui em diante.
— Como sabe do que estou pensando?
— Só preciso de uma prova de tua coragem
— a velha continuou falando, ignorando a garota.
— Tudo bem então —arrancou o colar sem
pensar muito e ofereceu à velha.
— Não aqui. E não agora. Deve me
entregar o colar em outro local, um local especial. Quando sair de minha casa,
passe na catedral e, lá, deixe o colar. Assim que fizer isto, as sapatilhas
serão tuas.
— Na catedral? Já estou aqui com você. Basta
pegar o colar e me entregar as sapatilhas de uma vez.
— Não lhe cabe questionar, criança.
Apenas siga as regras. Deixe o colar na catedral, apanhe o que é teu e siga
para a grande noite de tua vida.
— Mas onde exatamente eu tenho que
deixar?
— Reconhecerá o local quando lá estiver.
Simplesmente, saberá que encontrou. Mas ninguém pode saber onde está ou o que
faz. Concorda?
— Sim, concordo.
— Muito bem. Então, para selar nosso
acordo e nossos termos — disse a senhora, agora em posse de um punhal prateado.
Apertou-o contra a palma da própria mão até que um filete de sangue escorresse
— agora é sua vez, me dê tua mão. Lembre-se que esta é tua última chance de
voltar atrás.
— Já disse que concordo! — disse a
garota irritada, tomando o punhal e fazendo um leve corte na palma da mão.
— Muito bem, agora vá e faça o que
combinamos. Não se esqueça das regras e tome cuidado para não descumpri-las em
nenhum momento. Esteja sempre atenta a tudo que faz. Equívocos não serão
tolerados. Siga em busca da sua grande noite, criança. Você já conhece a saída
— dito isso, virou-se e desapareceu na penumbra do cômodo seguinte.
A garota deixou
a casa e partiu. Sua mente ainda tentava processar tudo que tinha acontecido
até então. Perdida em pensamentos e sensações caminhou pelas ruas que já
estavam quase completamente cobertas pela noite. Olhou para o colar com a foto
da mãe. Talvez esta seja a última vez que
vejo esta foto, mamãe, mas não será a última vez que penso em você. Este colar
não é nada perto do amor que verdadeiramente sinto em meu coração. Pensando
bem, parece que nesta hora, você é quem irá me ajudar mais uma vez. Assim como
tem me ajudado a suportar tantas provações. Só nós duas sabemos. Só nós. As
pernas pararam quase que por conta própria. Ela estava de frente para a antiga
catedral. Não conseguia recordar o caminho que tinha feito até ali. Era como se
tivesse percorrido apenas alguns metros, mas a imponente igreja era muito
distante. Agora a noite já dominava tudo e a lua se erguia esplendorosa no céu.
Folhas secas
espalhadas pelo pátio se quebravam sob o peso de seus pés e o vento gelado
começava a incomodar um pouco. A luz da lua permitiu que caminhasse sem
dificuldade até a entrada, entre gigantescas imagens de São Pedro e São Paulo,
que pareciam observá-la, como dois guardiões prontos e dispostos a barrar
qualquer invasor. Como vou encontrar o
local exato em uma igreja tão grande? Encostou o ombro na pesada porta de
madeira esculpida com imagens dos passos da paixão de Cristo. Estava aberta. No
interior, tudo estava completamente apagado e apenas uma fraca luz vermelha no
altar indicava onde estava o sacrário. Apanhou o celular na bolsa e apertou um
botão qualquer, virando-o para o chão branquíssimo de mármore. A luz do
aparelho permitia que pudesse enxergar alguns passos à frente.
Seguiu devagar
pelo corredor central, movimentando o celular na direção dos bancos e paredes,
buscando algo que lhe chamasse a atenção e que indicasse o lugar exato para
cumprir sua missão. Estátuas e pinturas de santos acompanhavam cada passo seu
com o olhar perdido. O celular se apagou. Droga,
por que hoje em dia ainda fazem celulares sem lanterna? Apertou novamente
alguma tecla e a luz do visor permitiu que visse mais alguns metros adiante. O
silêncio era apavorante e tranquilizador e, em espaços constantes, era quebrado
pelo ruído dos sapatos no chão, que ecoava em todas as direções. Será que se alguém estivesse aqui e visse
essa luz sairia correndo? Pensaria que era uma alma? Tomara que não haja
ninguém por aqui, porque o mais provável é que pensem que sou algum ladrão. Novamente
a luz se apagou. Apertou mais algumas teclas sem olhar e deu mais um passo, já
se aproximando do fim do corredor.
Examinou o altar
com cuidado. Haviam pinturas de baixo até o teto. À esquerda, a chegada das
almas aos céus era anunciada por anjos majestosos empunhando instrumentos
musicais e armas, quase sempre longas lanças douradas, que contrastavam contra
o profundo azul e branco das nuvens. À direita, demônios de todas as formas
recebiam com sorrisos maliciosos aqueles que não tiveram uma vida correta e
passariam a eternidade em sofrimento. Almas apavoradas gritavam e tentavam
escapar, sendo apunhaladas por pesadas espadas em brasa. De ambos os lados,
duas portas davam para corredores que levavam às sacristias. Do lado esquerdo a
porta era vigiada pela estátua de pedra de um imenso falcão com as asas
abertas, logo abaixo do local de onde surgiam raios de luz na pintura. Do outro
lado a madeira sobre a porta era toda trabalhada na forma de uma serpente que se
esgueirava e repousava preguiçosamente sob os pés da figura austera que lançava
chamas sobre as almas fugitivas. Após examinar com cuidado cada local, nada lhe
chamou a atenção ali. Virou-se para a direita, rumo à sacristia.
Os sapatos
fizeram um barulho mais alto quando tocaram o chão daquele setor, que era de
madeira. Um amontoado de imagens quebradas fazia guarda do local. Anjos com
asas partidas e a pintura da pele descascada, santos sem membros, pinturas
rasgadas. Esses eram os adornos do corredor à sua frente. O local havia
adquirido um profundo tom de púrpura e laranja, causado pela luz da lua, que
atravessava os vitrais pelo lado direito do prédio. Seguiu aquele caminho
estreito, utilizando o celular para observar os cantos onde a luz não
alcançava, principalmente nos locais onde a lua era tampada pelas árvores do
lado de fora, já quase sem folhas pelo outono. Em alguns momentos, as sombras
formavam uma teia no chão e na parede oposta.
Seus ouvidos
notaram um barulho peculiar. Era como como uma espécie de som eletrônico. Familiar,
mas parecia estranho naquele cenário. Durava alguns poucos segundos e parava,
para recomeçar mais uma vez. Olhou para trás e em volta mas não viu nada. De onde vem isso? Se virou para frente e
o som ficou mais alto, emanado de algum lugar próximo.
— Alô? O que foi?
Virou o celular
e percebeu que era dali que vinha o ruído. Sem querer, apertando qualquer tecla,
havia ligado para alguém. O coração disparou quando viu o que tinha feito. Liguei para ele, logo para ele. O que vou
fazer agora?
— Alô? É, oi! Tudo bem? — foi o máximo
que conseguiu dizer na hora.
— Tudo sim. Muito nervosa para hoje? Foi
bom você ter ligado, eu queria mesmo conversar com você antes da apresentação.
É bom que os parceiros estejam em sintonia numa noite como essa, não acha?
— Sim, claro. Estou um pouco ansiosa,
mas acho que tudo vai dar certo — continuou andando, sem prestar muita atenção
no que falava, com a cabeça baixa para observar cada canto.
— Isso é totalmente normal, eu também
estou. Mas formamos um bom par e vamos tirar de letra esta noite. Você já está a
caminho?
— Ah, logo eu... — parou ao avistar uma
imensa estrutura de pedra que encerrava o corredor à sua frente. Só pode ser ali. Tem de ser. Tirou o
celular do rosto para iluminar a estrutura em frente — tem que ser aquele mausoléu
— soltou as palavras sem perceber que as estava falando.
— Mausoléu? Você está em algum
cemitério? Que diabos está fazendo aí? — a voz do garoto era baixa, mas
totalmente compreensível no silêncio daquele lugar.
Ela parou e
observou as esculturas que formavam cenas de caça. O mármore branco adquirira um
tom róseo pela luz que inundava o ambiente. Na base do túmulo, animais eram
destroçados por cães e homens a cavalo, enquanto no alto de um bloco, figuras
dos mesmos animais mostravam sua face austera e vingativa. No centro havia um
imenso coelho trespassado por uma lança. Ainda vivo, arreganhava os dentes, em
um misto de fúria e assombro, como um líder rebelde lutando enquanto suas
forças não se esvaíam.
— Ei, me responde! Por que você está num
cemitério? — o garoto continuava falando pelo telefone, mas a garota não dava
muita atenção para isso.
Ela se aproximou
um pouco mais. Podia sentir como o mármore era frio, mas da base da estátua do
coelho parecia emanar um calor muito forte. Aproximou a mão e pareceu ouvir
alguma voz, quase um sussurro. Olhou para trás, mas nada havia. Voltou
novamente para frente e depositou o colar. Ouviu aquele sussurro mais uma vez,
mas agora era quase possível distinguir uma voz.
— Que barulho foi esse? — disse o garoto
assustado e sem entender porque era ignorado.
Ela sabia que já
tinha feito o que devia. Tentou se afastar, mas não conseguiu. A voz começava a
dominar os movimentos de seu corpo. Tudo ao seu redor parecia se mover
lentamente. Lutava contra aquela força. Cada vez mais lhe faltavam as suas. Por
conta própria, suas mãos se apoiaram na borda do mausoléu e ela subiu. Agora
era como se toda a catedral estivesse se movimentando. Girando lentamente em
torno dela. Apenas aquela estrutura na qual se apoiava permanecia imóvel. Seu
corpo estava gelado, com exceção de suas bochechas, molhadas pelo choro.
— Por que você está chorando? O que está
acontecendo? Me responda estou ficando preocupado.
Se sentia como
uma marionete. Não conseguia dizer nada. Não conseguia controlar seus próprios
membros.
— O que tem para mim? — agora o sussurro
claramente havia se tornado uma voz, embora ainda muito baixa.
Sua mão agarrou
o colar e estendeu-o na direção à sua frente. Seus músculos começavam a doer de
tanto lutar contra os movimentos que seu corpo insistia em fazer naquela
direção. Uma névoa marrom começou a rodear tudo em volta. O cheiro era forte e
seus pulmões começaram a arder. A cada momento se tornava mais espessa. Não era
mais uma névoa, era uma fumaça escura. Girava calmamente no princípio, para
depois se tornar um redemoinho violento em sua volta, uma densa cortina que não
deixava mais que a luz penetrasse. Não conseguia ver nada, além do coelho.
— Ah, o amor é tão lindo, não é mesmo? —
a voz agora era facilmente ouvida, mesmo que não fosse possível identificar de
onde vinha — por ele vocês se esquecem facilmente de tudo. Se esquecem das
pessoas que sempre estiveram a seu lado. Foi assim tão simples renegar a mamãe,
foi?
— Quem está aí com você? — o garoto
estava apavorado do outro lado do telefone.
A fumaça havia
coberto tudo por completo. Só havia a escuridão, quando uma luz azul muito
fraca surgiu na sua frente. Os joelhos se dobraram. Ela parecia flutuar. Sentia
como se os ossos estivessem se separando da carne. A luz ficava mais forte, à
medida que adquiria um tom mais escuro. Fechou os olhos. De nada adiantou, continuava
enxergado tudo. Virou a cabeça contra seu ombro, mas era como se ainda
estivesse com a cabeça erguida e olhando em frente. Ainda via tudo. Involuntariamente,
abriu os braços e curvou a cabeça para trás. Os olhos ardiam e a luz, agora
púrpura, inundava tudo ao redor. Quase sem forças, conseguiu gritar:
— Eu não quero mais! Eu desisto. Estou na
catedral! Preciso de ajuda! Vim aqui porque minha vizinha mandou que eu...
Num instante
tudo desapareceu e lá estava ela, ajoelhada sobre o túmulo, com o celular em
uma mão e o colar na outra. Tudo parecia como antes. Então, sentiu um sopro na
nuca, como uma respiração, mas de um ar glacial.
— Este não era o acordo. Você não deveria
dizer a ninguém onde estava, se lembra? — uma voz disse bem baixo em seu
ouvido.
Ela já sabia que
era a mesma voz. A mesma voz que emanava do mausoléu. A mesma voz que ouvira
mais cedo ao olhar para o tapete. Aquela voz estranhamente familiar. Aquela voz
que parecia ter lhe acompanhado desde o tempo em que suas memórias permitiam. Ela
havia se esquecido. Mas agora se lembrava. Sempre estivera com ela. Sempre a
acompanhara. Abriu as mãos e deixou o celular e o colar caírem. Ergueu a cabeça
lentamente. Seu corpo estava gelado. Começou a se virar. Seus joelhos
deslizaram sobre a superfície lisa do mármore. Os olhos fechados iam
percorrendo as paredes da sacristia em sua mente. Os punhos se fecharam. Completou
a volta. Estava de frente para aquilo. Abriu lentamente os olhos e encarou.
— O que foi isso? — do outro lado o
menino tinha sido dominado pelo desespero — Meu Deus, por que você está
gritando? Quem está aí com você? Me responda, por favor. O que houve? O que
houve, Cinderella? Cinderella, me responda!
Agradeço imensamente ao meu grande amigo Vinícius Mendonça, ou simplesmente Widalgo, que me ajudou quase como um revisor neste conto. Muito do que agora está aqui só foi possível pelas sugestões e considerações do Vinícius.