quarta-feira, 26 de junho de 2013

A GUARDIÃ


Já passava das 23:45 quando resolveu enfim se deitar.  Sabia que deveria ter se recolhido antes, pois seria difícil acordar no dia seguinte para a aula de Educação Física, mas o filme que estava assistindo na TV acabou sendo surpreendentemente interessante. Puxou o cobertor que estava ao pé de sua cama. Mesmo no breu total em que se encontrava sabia exatamente onde estava cada objeto. Passava as noites na casa da avó, que já tinha certa idade e a forma metódica como a senhora organizava a casa às vezes lhe parecia engraçado. O sono não demorou a aparecer e acabou adormecendo antes mesmo de terminar a lista de orações que fazia automaticamente todas as noites.

Acordou de repente sem ter ideia de que horas eram. Ainda tinha as últimas palavras da última oração na memória. Demorou certo tempo até entender o que o havia feito despertar. Na sala ao lado ouviu a madeira do piso rangir lentamente. No princípio comprimiu os olhos na tentativa de identificar algo, mas a escuridão era completa e nem um mínimo fio de luz o ajudava nessa empreitada. Os ruídos se tornaram mais audíveis. Agora era fácil entender o que acontecia. Todo aquele som era causado pela movimentação de algo sobre as velhas tábuas de madeira, já meio soltas do piso da sala.

No início tentou reforçar a si mesmo que se tratava de rangidos normais, que aconteciam pela mudança de temperatura durante a noite. Mas o ritmo dos ruídos deixou-o cada vez mais convencido de que se tratava do peso de algo. E esta coisa se movia lentamente. O frio começou a lhe percorrer a espinha e sentiu o coração disparar. Os passos se tornaram mais próximos da porta de seu quarto.

Pensou em chamar por alguém para se certificar que não era sua avó que estava andando pela casa, mas sua consciência tratou de lhe tirar essa ideia. Ela nunca andaria no escuro, por se tratar de uma senhora de idade avançada que caminhava com certa dificuldade. Ao chegar em frente à porta de seu quarto os ruídos cessaram. Nesse momento, pensou em se levantar e acender a luz do quarto para checar do que se tratava, mas ouviu a porta do quarto se abrindo lentamente e a tábua mais próxima da entrada rangiu de forma mais aguda, como sempre acontecia quando lá entravam.

Seus músculos se tornaram totalmente rígidos e a respiração falhou. O coração batia tão alto que quase abafava os rangidos que começaram novamente. Mas agora estavam mais próximos de sua cama. Tentou gritar, mas não conseguia emitir nenhum ruído, por mais baixo que fosse. Pensou em se levantar e correr, mas seus músculos não respondiam. Ficou ali deitado, totalmente imóvel, o coração disparado e a respiração inconstante.

Ainda tentava dizer a si mesmo e a seu corpo que tudo aquilo era pura imaginação, talvez algum animal que estava rastejando abaixo do assoalho da velha casa da avó. Mas quando os ruídos deram lugar ao peso de algo se movendo ao pé de sua cama, qualquer pensamento racional simplesmente desapareceu diante da realidade dos fatos. Realmente havia algo naquele quarto, e se dirigia direto para ele. Agora o frio não estava apenas em sua espinha, mas se espalhara por todo o corpo. Os músculos se tornaram ainda mais rígidos e o estômago doía de tão contraído. Cada vez que o colchão se abaixava com o peso da criatura se aproximando lentamente dele era como se uma pontada de dor atravessasse seus músculos. Sentia o ar lhe faltar em meio àquela avalanche de emoções.

Quando o colchão já estava se comprimindo muito perto de sua perna, por cima do velho cobertor, ouviu o ruído emitido pelo causador de toda aquela angústia. Em uma fração de segundos seu corpo pareceu voltar ao normal. Reconheceu aquilo como o simples miado de um gato. Na verdade, uma gata. O pequeno animal de estimação de sua avó costumava entrar sorrateiramente pela casa à noite e inúmeras vezes havia acordado com o bichano aos pés de sua cama pela manhã.

Só teve uma reação. Abraçou o pequeno animal em uma descarga de adrenalina pelo alívio. Depois começou a gargalhar de si mesmo, de sua inocência em imaginar que pudesse ser algo sobrenatural e nem passar por sua cabeça que era apenas a pequena gata, fazendo o que sempre fazia. Tudo devia ter durado menos de um minuto, que lhe pareceram uma eternidade agonizante. Terminou as orações que ficaram pela metade e finalmente adormeceu, com os músculos exaustos, mas a mente tranquila.

Acordou no horário habitual, com sua avó batendo à porta. Colocou o uniforme, tomou um café rápido, pois não se sentia muito bem praticando esportes após se esbaldar com as bolachas e bolos feitos pela senhora. No portão estava a gata. Passou a mão sobre sua cabeça e saiu. Na casa da esquina, a estranha vizinha lhe olhava diretamente. Sua avó não gostava muito dela, mas era tudo implicância por se tratar de uma senhora que seguia outra religião. Era uma médium muito conhecida na pequena cidade. Embora vivesse sozinha, sempre recebia visitas de diversas pessoas que vinham buscar ajuda espiritual. Estava quase em frente ao portão quando a senhora lhe chamou. 

- Você poderia me ajudar um momento?

- Poderia ser mais tarde? Já me atrasei demais para minha aula - respondeu com um sorriso simpático.

- Será breve. É que um de meus gatos acabou se prendendo em uma fita e não consigo tirá-lo dele, suplicou a senhora.

Entrou no quintal da casa e foi até onde o pequeno animal estava preso por um barbante junto à cerca da casa. De tão apertado a pequena mão com finos pelos brancos tinha um tom rosado pelo sangue que não circulava. Embora um pouco assustado, o animal permitiu que a aproximação e cortasse o barbante, com cuidado para não feri-lo ainda mais. Após terminar o trabalho se virou para a senhora, entregou-lhe o bichano e foi saindo. Foi quando notou que havia pelo menos mais uma meia dúzia de gatos no quintal. 

- A senhora gosta mesmo de gatos - falou já a caminho do portão. 

- Sim, sempre mantenho vários perto de mim. Gatos têm uma relação muito forte com o mundo sobrenatural - explicou a senhora. 

Com a surpresa da resposta, não se conteve. 

- Dessa eu não sabia, embora já tenham me falado isso sobre cães - completou.

- Ah, os cães sentem muitas coisas, e nos avisam delas quando latem para o nada - disse a senhora em tom de educadora. 

Já estava no portão quando a senhora colocou as mãos sobre seus ombros. 

- Mas os gatos são como guardiões. Eles não só sentem as manifestações de outros planos, como nos protegem das entidades malignas. Por isso é bom sempre ter um desses perto de você. Se algo tiver a intenção lhe causar algum mal, o gato virá até você para lhe proteger. Mas isso você já sabe, não é mesmo?

Após manter os olhos fixos por algum tempo, a senhora fechou o portão e entrou na casa. Do lado de fora pensamentos inundaram sua cabeça. Permaneceu imóvel na rua, com o frio lhe percorrendo novamente a espinha.


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