segunda-feira, 8 de julho de 2013

O CAVALO DO PADRE


Francisco olhou o relógio e tomou um susto. Já era quase 0:20 e ainda estava na casa da mãe conversando. Levantou-se em um salto da cadeira para se despedir. Ainda tinha um longo caminho a cavalo até sua casa e não poderia terminar mais uma partida de buraco.

- Bem, preciso ir. Olha a hora que é e eu aqui conversando. Quando chegar em casa Aurélia estará desesperada com meu atraso.

- Por que você não fica aqui essa noite, filho? Não acho seguro sair a essa hora da noite por aí.

- Como se eu não tivesse feito isso inúmeras vezes, mamãe. Não tem perigo nenhum. O cavalo sabe o caminho de volta pra casa até com os olhos fechados.

- Mas é quaresma e não é muito aconselhável sair por aí a essas horas. Você sabe as histórias que contam sobre o padre a cavalo que ronda essas estradas nessa época.

- Mamãe, em menos de uma hora já estarei em casa. E já faz tempo que não tenho medo de assombrações. Essas histórias eram interessantes quando eu era pequeno a senhora nos contava sobre elas em volta do fogão a lenha.

- Histórias? Seu avô mesmo já viu o padre andando por aqui. Ele inclusive conheceu o padre enquanto era vivo. Júlio era seu nome. Foi morto pelas pessoas que descobriram que estava roubando dinheiro da igreja. Primeiro mataram seu cavalo bem na sua frente. Dizem que o padre ficou desesperado, pois tinha um ciúme imenso daquele animal. Até estribos de prata mandou comprar. Passava as tardes todas lustrando a sela até que pudesse se pentear na frente dela.

- Pois saiba a senhora que se eu encontrar com esse padre vou pedir para dar uma volta no cavalo dele.

- Pare de besteira, rapaz. Dizem que o padre sempre apostava com os fazendeiros da região para ver quem ganhava dele numa corrida a cavalo. Ele prometeu que se alguém conseguisse ganharia os tais estribos de prata, mas ninguém nunca conseguiu essa proeza.

- Melhor então, vou apostar uma corrida com ele.

- Não brinque com essas coisas, Francisco. Melhor deixar os mortos tranquilos.

- Pois é, sendo assim, é melhor ele também não ficar andando por aí. E que não venha me procurar, a não ser que pretenda perder uma aposta comigo.

- Filho, pare com essa besteira. Mas mesmo que você só tenha medo dos vivos, ainda é perigoso tão tarde. Sabe-se lá quem pode estar no caminho.

- Deixe de besteiras, mamãe. Ninguém sai de casa a essa hora num dia frio como esse. Agora tenho que ir antes que Aurélia tenha um ataque de preocupação em casa. Sua benção.

- Deus te abençoe, meu filho. Vá em paz. 

Pegou o chapéu e o chicote que estavam atrás da porta, calçou as esporas e deu beijo no rosto da mãe. É uma pena deixar a senhora aqui sozinha, mas vou tentar aparecer mais vezes, pensou consigo. Subiu no cavalo e deu um rápido aceno para a senhora que permanecia na porta, apenas um vulto frente à luz do lampião. Talvez eu devesse levar a senhora para passar uns tempos comigo e Aurélia. Bem, isso se ela não me matar a vassouradas hoje quando eu chegar em casa. O sorriso percorreu seu rosto ao pensar em ainda ter que correr da esposa com uma vassoura nas mãos, após o longo caminho que percorreria te chegar em casa. 

Saiu do terreiro de chão batido e deu a volta na casa. O pequeno portão estava aberto e nem parou para fechá-lo. Naquela pequena cidade não havia problemas com que se preocupar. Ladrões ali eram muito raros. O medo de sua mãe não fazia sentido algum. Após uma pequena subida alcançou a velha rua de paralelepípedos. O som das ferraduras naquelas pedras irregulares abafou os grilos e rãs que faziam um concerto àquela hora. 

Demorou um pouco a se acostumar com a pouca luminosidade. A lua crescente podia ajudar um pouco nessa tarefa, mas naquela noite estava coberta pelas pesadas nuvens. Pelo menos não parece que vai chover. Seria bem pior chegar em casa tão tarde e ainda molhado.

Passou em frente à igrejinha que estava passando por uma reforma, pelo pequeno cemitério contornado pela cerca branca de madeira, pela velha padaria onde costumava ir com o pai todas as manhãs antes de irem ao sítio da família. Nem parecia que aquele vilarejo parado já tivera seus áureos tempos. Os bailes aos sábados, os jogos de futebol no pequeno campinho aos domingos. Aquelas lembranças lhe encheram a cabeça. 

Atravessou a ponte sobre o pequeno riacho pedregoso. Lembrou-se da primeira vez que vira Aurélia. Ali, naquelas pedras. Sempre ia àquele lugar com os amigos nos dias mais quentes. Na verdade, aquele lugar parecia um formigueiro nas férias do final do ano. Várias pessoas de fora da cidade vinham até ali buscar tranquilidade. A maioria era de velhos querendo sossego, é verdade. Mas vez ou outra vinham algumas netas em companhia deles. Vários romances repentinos aconteciam nos poucos dias que ali passavam.

Fora assim que ele e Aurélia se conheceram. Ela viera acompanhando o avô e não ficara mais que uma semana. E como estava linda aquele dia. As moças do vilarejo não costumavam usar maiôs. As mães dali nunca permitiriam uma pouca vergonha dessas. Mas Aurélia era da capital. Lá isso era normal. Mas mesmo assim, foi o rosto dela que lhe chamou a atenção. O jeito como os cabelos molhados lhe escorriam desarrumados sobre os ombros. Até a forma como as gotas d’água se depositavam sobre suas bochechas, tudo era perfeito nela. 

Depois voltavam para a cidade grande para talvez voltar no outro ano, mas isso era raro. Cidade grande, se isso aqui pudesse pelo menos ser chamado de cidade pequena faria mais sentido. Mas Aurélia voltou. Várias vezes.

Contornou um pequeno morro, que delimitava o vilarejo. Agora os barulhos de grilos, rãs, corujas e todo tipo de animais tomaram fôlego novamente. A rua calçadas havia terminado e seguiria pela estrada de terra até o velho sítio da família. Havia se mudado pra lá após o casamento com Aurélia. E veio acabar aqui nesse fim de mundo, esperando até essa hora por mim. Ah Aurélia, o que você fez para merecer isso? Casar-se logo comigo? Embora nunca tivesse sido claro, Francisco sempre soube que a família de sua esposa nunca aprovou a decisão dela em mudar-se para aquele lugar e abandonar a promissora carreira de professora na capital. 

Olhava distraído e pensativo para o chão, quase adormecendo na sela do cavalo. Repentinamente percebeu que a luminosidade tivera aumentado. Virou-se para o alto e lá estava a lua. Em dois dias talvez já fosse lua cheia, mas mesmo agora ela já iluminava tudo ao redor. Ficou ali olhando-a distraidamente por algum tempo. Voltou a si quando seu cavalo empacou. 

Sacudiu as rédeas, bateu com o chicote e enterrou as esporas nas costelas do animal, mas de nada adiantou. O animal era muito calmo e nunca havia feito aquilo. Relinchava sem parar, um relincho de desespero e medo. Começou a se movimentar para o canto da estrada. Nada que Francisco fizesse poderia fazer o cavalo se mover de volta para o centro da estrada. Ficou ali imóvel, apenas tremendo e bufando. 

Um relincho do outro lado da estrada fez Francisco virar-se. Bem ali ao seu estado havia outro cavalo. Totalmente negro e imponente. Francisco nunca havia visto um animal tão belo assim. Sua sela reluzia à luz da lua. Parecia ser feita de prata ou algo parecido. Ele nunca vira uma sela nem um cavalo tão bonitos quanto aqueles. Nesse instante se lembrou da história do padre que vagava por aquelas estradas durante a quaresma. Um arrepio lhe correu todo o corpo. Por que fora brincar com aquelas coisas? Com o coração disparado, enterrou ainda mais as esporas no seu pobre cavalo. Mas foi inútil. 

O cavalo negro olhou para eles e bateu uma pata dianteira no chão. Seu cavalo empinou e começou a rodar e relinchar de medo. Francisco por pouco não foi parar no chão. O outro animal permaneceu imóvel do outro lado da estrada. Olhava Francisco nos olhos. Parecia que a qualquer momento sairia alguma palavra dele. Bateu novamente uma das patas no chão da estrada, soltando uma forte baforada por suas ventas. O pequeno cavalo em que Francisco estava encolheu-se e chegou a urinar ali mesmo, tamanho o medo que sentia.  Nada que fizesse fazia com que seu cavalo se movesse.

Finalmente o animal ao lado começou a se mover. No princípio Francisco sentiu seu corpo gelar de medo. Para onde estaria indo? O belo garanhão negro passou por eles tranquilamente, sempre encarando Francisco diretamente nos olhos. Quando estava a poucos metros atrás deles seu cavalo disparou como nunca havia feito antes. Teve de se segurar firma nas rédeas para não cair. Não olhou para trás, pois temia que algo pudesse estar lhes seguindo. E temia ainda mais o que poderia estar lhes seguindo. 

Chegou em casa totalmente atônito, mas nada contou a Aurélia. A adorável esposa lhe esperava tranquila na porta. Entrou sem dizer uma palavra, ainda sem entender bem o que havia visto. Apenas beijou-a na testa. O alívio passou por ele. Agora estava seguro. Com certeza sua imaginação havia lhe pregado uma peça, mas naquela noite demorou um pouco para dormir. Depois que o sono finalmente veio teve uma noite tranquila. 

No outro dia acordou cedo e Aurélia já tinha feito o café. Deu um beijo na esposa, se sentou e conversaram um pouco sobre a mãe de Francisco. Deixou a esposa com os afazeres domésticos e foi cuidar da horta. Ao abrir a porta ouviu algo batendo do lado de fora. Acabei deixando a corrente e o cadeado pendurados no prego da porta outra vez? Ainda bem que Aurélia não viu que mais uma vez o portão ficou aberto. Melhor eu tirar logo, antes que ela perceba. Fechou a porta rapidamente e foi apanhar a corrente e o cadeado. Parou instantaneamente. Atrás da porta estavam pendurados dois estribos de prata. 

2 comentários:

  1. Giovani, esse conto me lembrou muito Rio Preto ... Os grilos, rãs e corujas, o som das ferraduras na rua de pedras irregulares, o terreiro de chão batido, uma estrada de terra iluminada pela luminosiddae da lua e é claro, os receios que vêm junto com a quaresma.

    O texto também está muito bom, com riqueza de detalhes que prende a atenção do leitor. Gostei muito!

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  2. Obrigado, mais uma vez, Carlinha. Esse conto é um dos que mais gostei de escrever. Era pra ser simplesmente a história de suspense, mas foi crescendo por conta própria e os detalhes da cidade e da vida dos personagens surgiram por si só.

    Não tem como negar que Rio Preto e Pentagna foram as inspirações pro cenário.

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