quinta-feira, 4 de julho de 2013

QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU?


Angélica era uma garotinha encantadora e adorada no pequeno vilarejo onde morava. Tinha sete anos e costumava ir todos os dias pela manhã buscar pães e leite para a avó, com quem vivia em um casebre há uns 10 minutos do centro da vila. Todos a conheciam, pois sempre participava das festas religiosas. Também era conhecida por cantar para todos os lados aonde ia. Uma voz de anjo, diziam, fazendo um trocadilho com seu nome. 

Naquela manhã estava especialmente adorável. Longos cachos loiros impecavelmente arrumados caíam sobre os ombros e as costas. A franja estava presa com um arco azul celeste, adornado com borboletas de pedras coloridas. O vestido azul claro lhe dava um ar de princesa. A imensa saia rodada era cheia de detalhes em renda e as mangas eram cheias nos ombros. Como aquela manhã estava um pouco fria, havia vestido uma longa meia branca. Nos pés, sapatilhas vermelhas com imensos laços chamavam a atenção. Entrou na padaria com sua costumeira bolsa de couro, de onde pendiam fitas coloridas. Ao avistar o dono do estabelecimento, recebeu-o com um sorriso um pouco vazio por alguns dentes de leite recém caídos. 

- Bom dia, Sr. Jarbas, como está hoje?

- Olá, Angélica! Estou muito bem e você? Aproveitando os últimos dias de férias?

- Sim, mas não vejo a hora de voltar às aulas para rever os colegas. Eu gosto muito da escola, sabe?!

- Que bom. É muito importante mesmo estudar, mas uma menina esperta como você já sabe disso, não é mesmo – disse o senhor apertando levemente a bochecha da criança - mas está perigoso você andar por aí sozinha, criança. A Dona Antonieta não lhe contou que coisas estranhas têm acontecido nas redondezas?

- Ah! A vovó me disse sim. Mas ainda é dia e parece que ninguém foi atacado perto da cidade. Ela disse que não teria problema, mas que eu tomasse cuidado ao falar com estranhos.

- Exatamente, tome muito cuidado. Mas pelo que temos ouvido não é com humanos que você deve se preocupar. Alguns fazendeiros nas redondezas têm ouvido lobos uivando à noite. E pela forma como as pessoas atacadas foram encontradas, só pode ser algum animal selvagem. Mas, deixe isso pra lá. Não é assunto para crianças, ainda mais uma tão adorável quanto você. Veio buscar os pães mais tarde hoje, quantos vai levar hoje?

- Hoje não vou levar pães. A vovó fez um bolo de fubá delicioso. Vim buscar aqueles doces de abóbora em formato de coração. Mas não estou vendo-os aqui no balcão.

- Ah, sim. Estão lá no estoque e ainda não tirei das caixas. Vou buscá-los e já volto.

- Se eu puder ir com o senhor pegá-los. É que ainda precisarei passar na farmácia e comprar algumas ervas para a vovó e se eu demorar muito ela pode ficar preocupada.

- Claro, sem problemas. Depois eu trago as caixas pra cá. Por aqui. 

Angélica saiu da padaria e seguiu para a farmácia, logo do outro lado da praça. Todos lhe davam sorrisos abertos e ela seguia cantarolando com sua bolsa. Passando em frente à pequena igrejinha, o jardineiro lhe entregou uma margarida recém colhida.

- Vou levar e fazer uma surpresa para a vovó – disse com um amplo sorriso para o velho senhor meio encurvado. 

Entrou na farmácia e foi prontamente atendida pela senhor de óculos e alguns ralos fios de cabelo brancos.

- Olá, Angélica, como está querida? E essa flor na sua mão? Aposto que vai levar para a Dona Antonieta!

- Então o senhor acaba de ganhar uma aposta, Sr. Leopoldo. Vim buscar algumas coisas para a vovó. Eu preciso daquelas ervas secas que ela sempre compra.

- Ah, sim. Se eu não me engano a sua avó sempre leva essas...aqui – pegou um saquinho com várias ervas secas e moídas e entregou à menina.

- Devem ser essas mesmas. O senhor conhece os gostos da vovó melhor que eu, após tanto tempo comprando aqui. Agora tenho que ir. Até mais.

- Angélica, espere um minuto. Tem uma mancha de sangue na sua meia. Aconteceu alguma coisa?

- Ah, isso? Eu nem tinha visto. É que caí no quintal ontem e eu acabo mexendo sem parar no machucado. Eu devo ter coçado agora e começou a sangrar de novo, mas não é nada demais. Quando eu chegar em casa peço para a vovó fazer um curativo.

- Nem pensar. Vamos lá dentro que eu mesmo faço um curativo pra você. Você não vai querer manchar toda a meia, não é mesmo?

- Se não for muito incômodo para o senhor, eu vou aceitar. Mas isso não vai me livrar da bronca da vovó. O senhor sabia que manchas de sangue são muito difíceis de tirar da roupa?

- Eu imagino, criança. E quando voltar para casa tome cuidado no caminho. Nos últimos tempos algumas coisas aconteceram. Mas não é algo para comentar com crianças. Apenas se cuide, está bem? 

A garota deixou a farmácia com o curativo no joelho e seguiu para a casa da avó. Encontrou com sua professora quando já estava na saída da cidade. Mais uma vez foi avisada para que tomasse cuidado no caminho de volta. Virou à direita e seguiu para a propriedade da família. O avô de Angélica havia tido o cuidado de encher aquele caminho com blocos de pedra, que permitiam que se andasse por ali tranquilamente a qualquer hora. 

Não demorou nem 10 minutos e já estava na entrada da casa da avó. Abriu o pequenino portão pintado de branco. Atravessou o enorme jardim cheio de roseiras e azaleias, que a avó passava a maior parte do dia cuidando. No meio do caminho viu a porta se abrir. Lá estava Dona Antonieta, uma senhora baixa com cabelos quase completamente brancos presos em um coque. Era um pouco gorda, devido às deliciosas guloseimas que preparava todos os dias para ela e a neta. Deu um sorriso e abraçou a neta.

- Vamos logo para dentro Angélica, está frio aqui fora. Conseguiu encontrar tudo que eu pedi que trouxesse?

- Na verdade foi até melhor, vovó. E trouxe isso também – e sorrindo entregou a margarida à avó.

- Oh Angélica, você é realmente uma menina adorável. Não tem como alguém não gostar de você! 

Entraram e a avó foi logo fechar a janela da frente, por onde entrava um vento cortante. Angélica deixou a bolsa sobre a mesa na sala. Ficou algum tempo olhando as fotografias de família sobre a cristaleira.

- Onde está? – disse a avó bruscamente em um tom ansioso, jogando a margarida no chão.

- Aí sobre a mesa. Dessa vez quase tive um problema. Acabou pingando sangue na meia e o farmacêutico ficou meio desconfiado. Mas não resistiu e levou essa adorável garotinha aqui até o interior da farmácia para fazer esse curativo – disse apontando para a perna, com um sorriso malicioso passando por seu rosto. 

A avó abriu a bolsa e não conteve a satisfação. Com as mãos trêmulas retirou de lá duas cabeças, a do padeiro e a do farmacêutico. Levou-as com cuidado para a cozinha, depositando-as sobre a pia e voltou lambendo a ponta dos dedos gordos.

- Realmente você me saiu melhor que a encomenda. Não esperava que tivesse dois nessa sacola. Mas não vou tomar o sangue do velho farmacêutico. Velhos sempre têm um gosto meio desagradável. Esse fica para você – disse a velha senhora com cara de nojo.

- Tudo bem, você fica com o padeiro então. Por mim tanto faz – pronunciou-se a garota, retirando duas garrafas cheias de sangue do fundo da sacola – Tome o seu então. 

Entregou uma garrafa para a velha e virou em um único gole todo o conteúdo. Um fio de sangue escorreu ao lado de sua boa. No êxtase, as duas criaturas perderam sua forma humana. Eram agora vultos altos que até podiam lembrar o corpo de uma pessoa, mas constituídos apenas por uma fumaça negra que dava forma às silhuetas. Os dedos das mãos eram longas garras afiadas. O rosto se assemelhava a um tecido escuro amarrado sobre a face e no que seriam os olhos via-se apenas uma fraca luz acinzentada. Não pararam para respirar até que todo o conteúdo da garrafa tinha sido tomado.

- Acho que já está na hora de partirmos – disse a forma que antes era a pequena Angélica.

- Estamos seguros aqui. Ninguém desconfiaria de uma pobre senhora e sua netinha. Acho que encontramos os disfarces perfeitos.

- Hoje cedo todos me advertiram sobre as pessoas que desapareceram na região. Na verdade, não quiseram dizer a uma garotinha adorável que o que sumiu foram apenas as cabeças, mas todos estão preocupados. E hoje, após as mortes na cidade eles vão tomar alguma atitude mais severa. Já pensou se acabarem batendo aqui para nos avisar e virem alguma coisa?!

- Pode ser que você tenha razão. Vou preparar essas cabeças que você trouxe para que possamos usá-las mais pra frente. Venha me ajudar. 

As duas sombras encaminharam-se para a cozinha, pegaram as cabeças e foram para um aposento nos fundos da casa. Lá havia uma série de materiais e poções para feitiços. A criatura que era a velha tomou alguns e misturou-os num recipiente grande. Afundou as duas cabeças lá e após alguns minutos retirou-as. Ambas pareciam como se ainda estivessem ligadas ao corpo original. Piscavam os olhos sem parar, com o semblante intrigado, tentando entender o que estava acontecendo. Mas não emitiam nenhum som.

- Agora estão prontas. Leve-as para lá e pendure na parede até que terminemos tudo para partirmos – disse a sombra que antes fora a velha, após prendê-las fortemente em uma tábua de madeira. As cabeças pareciam de animais empalhados, a não ser pelo fato de que animais não costumam se movimentar muito depois de mortos. 

A outra sombra levou as duas cabeças para uma pequena sala ao lado. Acendeu a luz e procurou um bom lugar para colocá-las. Achou alguns pregos já dispostos na parede e fixou as tábuas. Um de cada vez. Agora as cabeças pareciam horrorizadas com o que viam. Por todo o cômodo, inúmeras cabeças vivas piscavam com olhos fixados nos novos troféus. Elas tentavam gritar, mas não tinham mais voz. Suas almas agora pertenciam àquelas sombras. A sombra olhou para as cabeças na parede a fim de certificar-se de que não cairiam e se dirigiu para a saída. Parou um instante e olhou para uma em especial.

- Por que está tão triste hoje, querida? – disse com um sorriso maldoso. Na sua frente, com os olhos baixos e queixo tremendo com o desejo de chorar estava a cabeça de Angélica.

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