segunda-feira, 15 de julho de 2013

PINTASSILGOS


Ainda estava escuro, não apenas por ser tão cedo, mas porque uma densa neblina cobria tudo ao redor. Alice terminou de encher o balde e esfregou as mãos na intenção de que os dedos voltassem a responder aos seus comandos. Era normal que o frio acometesse aquela região nessa época, mas especialmente esse ano parecia que o inverno vinha sendo bastante mais rigoroso. Pegou os pesados baldes e viu a fumaça sair de sua boca com a baforada que soltou no esforço de erguê-los. Seus pés já estavam encharcados com o orvalho que se acumulava na grama baixa em frente à sua casa, o que só tornava a sensação de frio ainda maior. 

Entrou empurrando a porta com os ombros, mas teve que deixar os baldes no chão para soltar o fio da blusa de lã que acabou se enroscando em um prego. Sua mãe estava às voltas com os preparativos para o almoço. Ainda teriam muitas coisas a preparar naquele dia. A previsão era de que o padre chegasse em torno das onze horas.

- Ela está melhor hoje, mamãe?

- Agora está calma. Fui há pouco olhar e parece que está dormindo tranquila, finalmente. Mas logo isso tudo vai se resolver, querida. Não se preocupe, antes do que imagina vocês estarão correndo juntas por aí e brincando novamente, como sempre fizeram.

- Parece que já faz tanto tempo que ela está assim. Mal consigo me lembrar daquele tempo alegre. Éramos muito mais felizes. Todos nós. 

- Não fique assim, Alice. Como lhe disse, o padre chegará em breve e todo esse tormento acabará, afinal.

- Espero que a senhora esteja certa. Não consigo entender porque isso foi acontecer logo conosco. Logo com ela.

- Dizem que as criaturas malígnas rondam aqueles que têm o coração mais puro, querida. São essas almas que eles desejam com mais ardor. E sua irmã sempre foi uma garotinha tão bondosa.

- Lembra-se como ela passava horas cuidando dos pássaros no jardim, mamãe? Nunca vi alguém que se importasse tanto com animais. Posso subir pra vê-la?

- Tudo bem, mas tome cuidado para não acordá-la. E não demore muito, ainda preciso da sua ajuda pra terminarmos de organizar tudo aqui. Logo seu pai chegará da cidade.

- Eu só quero olhar pra ela um pouco. Sinto muita saudade. Desde que as crises começaram a piorar ela parece nem me reconhecer - disse, com uma lágrima escorrendo de seus olhos. Tentou disfarçar da mãe, enquanto virava-se e subia as escadas.

Alice tomou um susto ao entrar no quarto da irmã. Esperava encontrá-la repousando, mas ela estava em pé, em frente à janela. Ao ouvir o som na porta, virou-se e sorriu calmamente para Alice, que permanecia imóvel na entrada.

- Irmã, parece que faz tanto tempo que não te vejo. Desde de que tudo isso começou a piorar. Sinto tanto sua falta.

- Emília! Achei que você estava dormindo. Eu vim só pra te ver, como faço sempre. Não tenho certeza se você tem consciência disso.

- Mesmo que eu não me lembre, nunca duvidaria que você sempre esteve ao meu lado. Nós nascemos juntas e seremos unidas pra sempre, eu sei disso. Venha, me dê um abraço. 

Alice caminhou até a irmã gêmea. O quarto era uma grande bagunça. Quando os ataques começavam ninguém conseguia controlar Emília. A força que ela adquiria era sobrehumana e costumava jogar objetos em qualquer um que estivesse junto dela. A única saída era trancar a porta. Mas isso não abafava os gritos, nem o som agoniante de suas unhas raspando tudo ao redor. Reparou nas marcas de unha nos móveis. Por onde olhasse havia algo jogado, objetos quebrados, roupas rasgadas.

- Assim que você melhorar vou te ajudar a arrumar tudo isso. Às vezes eu venho aqui e tento organizar um pouco as coisas enquanto você dorme.

- Eu sei. Mas quando essas coisas todas acontecem não sou eu que estou comandando, Alice. Se já te agredi, mesmo que com palavras, saiba que nunca fui eu - disse abraçando a irmã - Há quanto tempo não conversamos?

- Há muito tempo. Mas sempre canto aquela música pra você, lembra? Aquela que a vovó nos ensinou quando ficamos as férias todas na casa dela.

- Sim, claro que me lembro. Quando eu não estou no comando, tento me refugiar em algum lugar dentro de mim e cantarolo essa música. Ela me acalma, enquanto tudo ocorre aqui fora. E quando eu volto, não consigo me lembrar de nada que fiz. Tenho apenas as recordações da música. Bem, tenho outras recordações também, de tudo que vejo do outro lado, mas prefiro não falar sobre isso. Quero aproveitar esse momento com minha irmã.

- Você estava olhando lá fora. Deve estar com muita vontade de sair, eu imagino. Hoje não seria um dia muito agradável, está muito frio. Mas tenho certeza que logo estaremos as duas novamente correndo por aí, brincando e cantando.

- Tenho muita vontade de sair, realmente. Mas eu estava olhando aquele passarinho. Um pintassilgo, consegue ver? 

Alice olhou e viu o pequeno pássaro em um galho alto, próximo à janela. As penas amarelas e pretas formavam um belo contraste com a neblina que insistia em cobrir toda a paisagem. O pequeno pássaro voou até a janela e ficou lá, curioso e atento, olhando-as. Emília posicionou as mãos contra o vidro. Incrivelmente o animalzinho não saiu espantado. Isso sempre acontecia. Ela parecia exercer uma atração sobre os animais. Alice reparou nas mãos da irmã. Haviam inúmeras cicatrizes e cortes, em virtude dos ataques mais violentos. As unhas estavam quebradas e sujas. Talvez fosse sangue seco. Nos pulsos podia-se ver as marcas das cordas que tinham de ser usadas algumas vezes para prendê-la à cama. Nesse momento a mãe lhe gritou da cozinha.

- Bem, tenho que ir ajudar a mãe, Emília. Daqui a pouco o papai vai chegar com o padre e logo tudo isso será passado. Você estará muito melhor e vai poder brincar com os pássaros de novo, sem nenhuma janela entre vocês.

- Estou com medo, Alice.

- Medo de quê? As coisas serão melhores, você vai ver.

- É que às vezes sinto como se ele me nutrisse de alguma forma. Pode parecer besteira, mas me sinto muito mais fraca quando volto dos ataques. É como se eu fosse dependente dele agora.

- Isso é só porque ele é que está se nutrindo de você. Pode ter certeza que tudo voltará a ser como antes.

- É, você sempre foi a mais esperta de nós. E eu sempre pude confiar em você. Deve estar certa. Mas me dê um abraço antes de ir. Estou com uma sensação estranha hoje, algo que nunca senti desde que essas coisas começaram a acontecer. 

Após o longo abraço, Alice deixou o quarto e foi ajudar a mãe a terminar as coisas. Passaram toda a manhã arrumando a casa e preparando o almoço. Por volta das onze horas ouviram o barulho da carroça que vinha com o pai e o padre. Almoçaram em um silêncio cortante. Após uma meia hora os dois homens subiram. Alice permaneceu com a mãe, rezando com um terço em suas mãos. Nem a mãe conseguiu conter o choro quando os gritos da irmã começaram. Não era a irmã que se manifestava ali, isso era certo. Mas era o corpo dela que sofria as dores inflingidas por aquela entidade. Tudo durou menos de uma hora, que pareceram uma eternidade. O pai desceu com padre, mantendo a porta do quarto fechada.

- Agora é melhor deixar que ela descanse - disse o padre - esses rituais cansam muito a pessoa que está possuída. Mais tarde leve algo para ela comer, mas algo leve. Uma sopa bem rala seria o ideal. Ela ainda vai demorar alguns dias para se recuperar totalmente, mas em algumas semanas já estará andando por aí. Agora preciso ir, pois ainda tenho algumas coisas a resolver na igreja. Me chamem a qualquer hora, caso algo aconteça.

- Muito obrigado, padre. Sua bênção. 

Aquela tarde foi tranquila. A mãe levou uma sopa para Emília, mas como ela ainda estava dormindo achou melhor não acordá-la. As horas passaram arrastadas e silenciosas. A neblina da manhã havia dado lugar a uma chuva forte e insistente. As experiências que haviam vivenciado nos últimos tempos marcariam todos daquela família para sempre. Mas finalmente era tudo passado. Agora teriam que dar tempo para a recuperação física completa de Emília e poderiam seguir suas pacatas vidas como antes.

 Devia estar próximo das cinco horas da tarde quando Alice acabou adormecendo. Todo o peso de ter que suportar aquilo tudo ainda tão jovem tinha sido completamente desgastante. Teve um sonho calmo. Estava em um amplo campo com um forte Sol tingindo tudo ao redor com tons dourados. Não conseguia avistar nenhuma árvore. Nenhum animal. Não havia som algum. Nem mesmo os ruídos de seus pés sobre a vegetação baixa eram ouvidos. À sua frente, conseguiu reconhecer Emília sentada de costas pra ela bem à frente de um precipício. Andou calmamente e sentou-se ao lado da irmã. Mesmo sem dizer uma palavra sabia que ela sentira sua presença ali desde o começo. Ficaram caladas por alguns instantes, com as pernas penduradas sobre a escuridão sem fim do abismo.

- Sente essa calma toda, Alice?

- Sim. É o alívio de saber que tudo vai acabar bem. Por muito tempo temi que toda essa situação não passasse nunca. Mas agora sei que logo tudo irá se assentar e voltar ao normal.

- Não, Alice. Nada será como antes. Essas experiências sempre deixam marcas muito profundas.

- Mas com o tempo vamos nos acostumar. Um dando apoio ao outro e nossa família voltará a ser feliz.

- Você se lembra do que nós víamos quando éramos pequenas? Todas aquelas criaturas que viviam nos rondando assim que mudamos pra essa casa?

- Coisa de criança. É normal que imaginemos coisas e misturemos o mundo real com esse mundo fantástico. No final nem sabemos direito o que vimos e o que foi apenas invenção.

- Não, irmã. Nós simplesmente tentamos fingir que essas coisas não existem e com o tempo acabamos realmente acreditando nisso. Mas elas estão à nossa volta o tempo todo. Nos vigiando. Esperando o momento certo para nos pegar de surpresa. Foi isso que aconteceu comigo. Você sempre foi mais corajosa e não temia essas manifestações. Eu preferi fingir que não via nada, mas fui surpreendida sendo diretamente afetada por elas.

- Faz muito tempo que eu não vejo nada disso também. O que aconteceu com você foi apenas uma provação pela qual teve que passar. Pela qual todos nós tivemos que passar para testar a unidade de nossa família. Mas resistimos a tudo isso. Tenho certeza que seremos ainda mais unidos depois de tudo que aconteceu.

- Não se iluda, Alice. Eles nos querem fora daqui. Eles desejam a casa. Me usaram para que nós fôssemos embora e tentarão usar você também. Tome cuidado minha irmã, por favor. Eu não posso fazer mais nada, essa missão agora é sua. E não tape os olhos para isso, não finja que nada acontece. Não faça mais isso. Eu fiz por muito tempo e tive que pagar um preço muito caro. Não cometa o mesmo erro. 

Segurou firme a mão de Alice. Agora não havia mais marca alguma na irmã. A pele havia se curado totalmente. Como era bom poder tocar a irmã novamente e sentir que tudo estava bem. Emília se levantou e permaneceu em silêncio por alguns instantes. Depois, virou-se para a irmã e deu um sorriso.

- Adeus, Alice. Nunca se esqueça que eu te amo. Amo a todos vocês. 

Dito isso, deixou o corpo cair no abismo. Alice abriu os olhos de uma vez. Tudo calmo. Estava de novo em casa. Não sabia quanto tempo havia dormido, mas a noite em breve chegaria. Ainda chovia muito forte lá fora. Se levantou e caminhou vagarosamente até o quarto da irmã. 

Completo silêncio. Tudo estava muito calmo e tranquilo. Alice permaneceu parada na porta durante algum tempo. Foi então que notou que a janela do quarto estava aberta e todo o chão à sua frente se encontrava completamente molhado. Correu até lá e fechou-a rapidamente. Virou-se para a Emília, que permanecia deitada com os braços estendidos. Agora parecia finalmente descansar tranquila. Ajoelhou-se e pegou a mão da irmã. Fria como uma pedra. O desespero tomou-lhe os sentidos. Só agora tomara razão de que não havia nenhum sinal de respiração. Nenhuma reação. A irmã estava morta, talvez há bastante tempo. 

Permaneceu ali um pouco, com as lágrimas pingando no chão. Não havia mais o que ser feito, apenas avisar aos pais. Levantou-se e, ao virar-se para a porta se deparou com uma visão que nunca teria imaginado. No lado oposto do quarto haviam centenas de pintassilgos. Sobre o guarda-roupas, sobre a porta, no chão. Permaneciam ali, totalmente parados, sem fazer nenhum ruído ou movimento, olhando Alice fixamente nos olhos. Ela voltou-se para a janela. Não podia deixar aqueles animais lá. Levantou a madeira e viu, abaixo da frondosa árvore, um vulto. A princípio pensou que fosse seu pai, mas era mais alto. Com toda aquela chuva não conseguia distinguir muito bem o que era. O vulto permaneceu parado, encarando-a durante um bom tempo e começou a caminhar rumo ao horizonte, até desaparecer completamente em meio à torrente de água que havia se intensificado ainda mais. Alice abriu a janela  e virou-se. Não havia mais nenhum passarinho lá. No quarto, apenas ela e a irmã. Sentiu um frio cortante percorrer-lhe a espinha.

4 comentários:

  1. Esse frio está me lembra Rio Preto no inverno e esse enredo bem me parece as histórias que escutávamos por lá! Muito bom!Muito criativo e com descrições muito ricas!

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    1. Obrigado, Carlinha! Realmente lembra a terrinha, né? Acho que essa história poderia ter se passado no Funil.

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    1. Muito obrigado, Claudia! A princípio era para ser uma história de terror puro, mas de acordo com que fui escrevendo o drama tomou conta!

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